A
vida nasce aonde menos se espera... (Lucas 1,39-56)
Para muitas igrejas, a Palavra evangélica
proposta para a liturgia do próximo final de semana é a visita de Maria a
Isabel (Lucas 1,39-56), que faz parte dos relatos da Infância de Jesus segundo
Lucas (Lucas 1-2). Essas narrativas, mais do que dizerem como os fatos
aconteceram, indicam para realidades mais profundas que iluminem a caminhada
das comunidades a quem se destinam. Em resumo, o primeiro capítulo do Evangelho
da Infância mostra como é reconhecida a ação de Deus em meio ao povo excluído,
mas cheio de esperança, representado por Zacarias, Isabel e Maria. Dois eram
idosos, uma era estéril e a outra ainda não havia tido relações sexuais com
homem. Portanto, eram pessoas de quem não se esperava que pudesse nascer vida
nova, que pudessem dar à luz uma criança.
Maria pôs-se a caminho... (Lucas 1,39)
Maria pôs-se a caminho... (Lucas 1,39)
A narrativa proposta pode ser dividida em
três momentos. O primeiro descreve
a ida de Maria à casa de Isabel e de
Zacarias, próxima de Jerusalém (Lucas 1,39-41), uma caminhada de mais de 100
km. De um lado, essa saída de casa faz-nos lembrar de tantas jovens que, como
Maria, também deixam seus povoados quando engravidam, a fim de encontrar apoio
em familiares que moram distante. De outro lado, quando foi chamada para ser a
mãe do Messias, Maria havia se disponibilizado para estar a serviço da Palavra
de Deus (Lucas 1,38). Agora, ela já está a caminho para servir, para ser
solidária com outra mulher, também grávida. É a solidariedade entre as mães que
reconhecem em seus corpos o agir do Espírito divino, pois ambas receberam a
graça da fecundidade de forma misteriosa. Mas não é somente o encontro de duas
mulheres. É também o encontro de duas crianças ainda no útero de suas mães. É o
encontro do Precursor com o Salvador. João alegra-se com a visita de Jesus
(Lucas 1,41). Ainda no ventre materno, já aponta para seu primo como aquele que
vem socorrer o seu povo num momento de forte repressão do império romano.
Feliz aquela que acreditou... (Lucas 1,45)
A segunda parte desta narrativa é a saudação
que Isabel faz a Maria (Lucas 1,42-45). Impulsionada pelo Espírito, a mãe de
João Batista reconhece Maria como a mãe do Messias. Ao mesmo tempo em que
elogia a sua fé (Lucas 1,45), a declara abençoada, bem-aventurada, assim como o
fruto do seu ventre (Lucas 1,42). Essa saudação faz lembrar outras mulheres que
também foram chamadas de benditas. São os casos de Jael (Juízes 5,24) e de
Judite (Judite 13,18), ambas libertadoras de seu povo ameaçado por exércitos
poderosos. Em Lucas 1,56, podemos ler que Maria ficou três meses com Isabel.
Mais uma vez, os autores do texto fazem memória das Escrituras
de Israel e
querem nos apresentar Maria como a nova Arca da Aliança, pois em seu útero
carrega o Emanuel, o Deus que está em nosso meio. É que, da mesma forma como
Maria ficou os três meses com Isabel, também a antiga Arca da Aliança havia
ficado durante três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,2-11; cf. v. 11). Em
outras palavras: os representantes da antiga Aliança, Zacarias (Javé se
lembrou) e Isabel (Deus é plenitude), reconhecem a ação de Deus em Maria (a
amada) e Jesus (Javé salva), representantes da nova Aliança. João (Javé é
misericórdia) anuncia que a misericórdia de Deus na antiga Aliança vem se
realizar plenamente em Jesus de Nazaré. Por isso, seus pulos de alegria no
ventre de Isabel (Lucas 1,41.44), acolhendo o novo que está por nascer.
E encheu de bens os famintos... (Lucas 1,53)
A terceira parte do relato é a reação de
Maria à saudação de Isabel, é o cântico de Maria conhecido como Magnificat (Lucas
1,46-55). Ele está recheado de memórias da história de Israel, especialmente do
canto de Ana, a mãe do profeta Samuel (1 Samuel 2,1-10). Entre outros textos,
recorda também a profecia de Sofonias em favor dos pobres de Javé, o resto fiel
a Deus (cf. Sofonias 2,3; 3,11-13).
Maria é a legítima representante de todos os
pobres que têm esperança. Da mesma forma como o profeta Habacuc (Hab 3,18), ela
percebe a presença de Deus e se alegra com sua grandeza (Lucas 1,46-47). E o
motivo dessa alegria é que, tal como na experiência libertadora do Êxodo (Êxodo
3,7-8), Deus viu a humilhação dos pobres e exerce sua misericórdia para com
eles, estando a seu lado para libertá-los (Lucas 1,49-50; Salmo 103,17).
Qual é a força capaz de promover essa
libertação? É a força do braço de Deus,
isto é, a força de sua justiça, que
consiste em um projeto revolucionário que subverte relações desiguais. Se antes
os poderosos humilhavam os pobres a partir de seus tronos, agora os famintos
são exaltados e comem pão com fartura (Lucas 1,51-53). Mais que ser uma mulher
submissa e alienada dos conflitos sociais de seu tempo, Maria é uma mulher de
luta pela igualdade e pela superação de todas as injustiças. Ela é subversiva
porque subverte as relações de humilhação propondo a acolhida e a igualdade.
Não é por acaso que seu filho seguiu os passos dela nesse caminho. É no
engajamento pela superação de todas as formas de opressão que revelamos a
misericórdia divina em nossa prática. A justiça de Deus se revela em seu agir
na defesa dos fracos e contra todos os sistemas que os oprimem, sejam eles
políticos ou econômicos, culturais, jurídicos ou religiosos. Nesse agir
libertador se manifesta a aliança fiel e
misericordiosa esperada desde as
origens do povo hebreu (Lucas 1,54-55; Miquéias 7,20).
O Magnificat celebra a esperança na
realização da vontade de Deus que liberta. E mais. Convida a todas as pessoas
discípulas de Jesus a nos juntarmos a Maria para colocar-nos a serviço desse
projeto de Deus, de modo que também em nós se realize a sua Palavra (cf. Lucas
1,38). A ação divina em Maria foi possível por que ela acreditou (Lucas 1,45),
ela deu a sua contribuição, colocando-se a serviço de Deus na solidariedade.
Mais adiante, quando uma mulher também declarara Maria feliz, Jesus dirá a ela
que “felizes, sobretudo, são os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em
prática” (cf. Lucas 11,27-28). E essa bem-aventurança soa forte para nós ainda
hoje.
[Ildo
Bohn Gass]
Nenhum comentário:
Postar um comentário