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4/19/2012

DUAS VIDAS, UMA MISSÃO

Por Pe. Alfiero Ceresoli


Tudo ficou esclarecido com um presente: um livro! De fato, o encontro misterioso precisava de esclarecimentos. O encontro tinha acontecido na “Igreja da paz”, mas não deixou nada em paz.
Guido Maria Conforti (1865-1931), um jovem seminarista da diocese de Parma, na Itália, costumava rezar numa igrejinha construída bem na beira da estrada que levava à escola. No altar, tinha um grande Crucifixo. O jovem olhava, olhava, olhava arrebatado. O Crucificado, no silêncio da capela falava ao coração: “Assim se ama!”. Como retribuir a este amor? Dar tudo, entregar-se inteira e totalmente ... Como pode acontecer isso? O livro sobre a vida de São Francisco Xavier chegou nas mãos do jovem Guido como uma resposta esclarecedora que o levou a uma decisão: “sacrificarei totalmente a mim mesmo, meus bens e tudo quanto estiver ao meu alcance para realizar o ideal de anunciar o evangelho a todos os povos” .
Cruzaram-se desta forma duas vidas, duas aventuras missionárias, duas testemunhas numa mesma espiritualidade missionária.
Não existe fotocópia na história. Entre Francisco e Guido cabe um espaço de três séculos. Viveram em culturas diferentes, em conjunturas históricas, experiências de vida e com visões de mundo profundamente distintas.
Xavier viveu no XVI e Conforti no século XIX. O primeiro passou sua vida apostólica em viagens por terra e por mar, da Europa à Índia, até o Japão. O segundo mal saiu, uma vez ou outra, de sua cidade. No entanto, encontramos na origem das duas aventuras espirituais e missionárias as mesmas forças motivadoras, o mesmo ponto de partida: a contemplação do amor do Pai, manifestado, quase “detonado”, no Filho Jesus crucificado.
O castelo de Xavier tem estrutura de um caracol e o menino Francisco não podia chegar ao centro do castelo, sua habitação, sem passar pela capela onde era guardado um grande Crucifixo. Guido não podia chegar à escola sem passar por uma igrejinha onde era cultuado o Crucifixo que o arrebatou.
As mães tinham orientado os filhos a não fixar o olhar sobre as feridas, os pregos, o sangue, mas a refletir sobre o amor que aquele Filho do Homem tinha manifestado para com a humanidade. O amor do Pai, no Filho pela ação do Espírito, ficará sempre a origem, a força, o dinamismo e o objetivo final da incansável ação missionária de Francisco e de Guido.
Quando adultos, encontrarão na Palavra de Deus a verbalização dessa experiência: “A caridade de Cristo nos impulsiona, nos constrange, nos obriga ... Ai de mim se não evangelizar ... Nenhuma criatura será capaz de nos separar do amor de Deus por nós, manifestado em Jesus Cristo nosso Senhor”.
A missão nasce de uma experiência de amor, uma experiência tão íntima e forte que a pessoa é arrebatada, de maneira que, com liberdade e alegria, se entrega plena e totalmente ao Pai para anunciar o Evangelho. A pessoa vive uma grande paixão por ser amada por Deus, feita louca por amor “ao pensarmos que se um só morreu por todos, e consequentemente todos morreram. E morreu por todos para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 5,14-15). Entrega-se até à morte: “todos morreram”! Nas cartas de Francisco Xavier uma frase torna-se um estribilho: “Estamos aqui por amor!”
“Ele morreu por todos”, pois toda pessoa foi criada a imagem e semelhança de Deus. Encontramos aqui a segunda grande força contemplativa e dinâmica da missão na vida de Francisco Xavier e Guido Maria Conforti. Contemplativa, pois é preciso ter o olhar penetrante e profético para enxergar além do visível o rosto de Deus no rosto de toda mulher e homem da terra.
Francisco em sua viagem para o Japão presencia aos rituais religiosos dos marinheiros em momentos de tempestade ou em momentos de calmaria. A sorte determinava os planos da viagem. Francisco reza por eles, pois “estes também os criastes a Vossa imagem e semelhança” . Afinal, tinha decidido viajar até o Japão porque lá havia “muitas imagens e semelhanças de Deus” . Esta é a razão de sua “loucura”: assim julgavam alguns confrades seus.
Encontramos, nas 137 cartas de Francisco, assim como nos escritos de Dom Guido, duas características fundamentais da espiritualidade missionária: a missão-garimpo e a missão-restituição. O missionário, antes de mais nada, vai à descoberta dos tesouros que já existem nos povos e nas pessoas. Estão lá, escondidos como as pepitas de ouro na terra ou na água. O missionário é como um garimpeiro à procura do “ouro” no meio de toda humanidade. Uma vez encontrado, o faz brilhar com a luz de Jesus Cristo.
Logo em seguida, inicia o processo de restituição: missão é dar a Deus o que é de Deus. O missionário contempla a imagem do Criador nas feições de toda pessoa humana, assim como os fariseus precisaram admitir que na moeda havia a imagem de César (cf. Mt 22,15-22). Dar a Deus o que é de Deus, pois sua imagem e inscrição estão gravadas no rosto e no coração de toda mulher e de todo homem.
O missionário não pode não ser um contemplativo. Contemplativo do amor de Deus revelado a ele e revelado a todos; contemplativo do rosto do seu Senhor em toda pessoa humana.

A fisionomia do mesmo Pai leva a uma terceira grande força dinâmica da missão: a fraternidade universal. Missão é anunciar a existência de um Pai de todos e convidar a reconhecer o Outro como irmão. Ninguém é órfão: todos somos irmãos e irmãs.
Interessante notar que esta contemplação levava Xavier e Conforti a fazer uma leitura positiva da situação histórica em que viviam. Para Francisco a descoberta de novas terras e de povos até então desconhecidos pelo Ocidente, assim como para Guido o desenvolvimento da tecnologia e dos meios de comunicação (trêns, carros, navios), despertavam o entusiasmo para uma nova oportunidade que Deus oferecia à humanidade de se encontrar, de se unir e de transformar as relações de competição em relações de solidariedade: a chance de construir finalmente um mundo fraterno.
Afinal, esse é o “vinho” que falta à humanidade, diz Conforti comentando as bodas de Caná: justiça, verdade, paz, amor .
Para Xavier as novas rotas marinhas, para Guido os meios mais rápidos de comunicação ... As situações diferenciam-se, a história muda, o sonho é o mesmo: fazer do mundo uma só família respeitando índole, cultura, língua de cada povo e pessoa, mas convivendo na justiça e na paz.
Será que o processo de mundialização no qual vivemos hoje, não é mais uma chance que o Pai nos oferece para reavivar o sonho da fraternidade universal?
Dessa tríplice contemplação – o Crucifixo, as feições de Deus nas pessoas, a fraternidade – brota uma atividade incansável, um engajamento em todas as iniciativas que possam levar pessoas e sociedades a uma convivência feliz.
A felicidade, aliás, marca toda a atividade missionária assim como as ações de graças pela maravilhas que o missionário vê acontecer em sua peregrinação entre os povos. Cantando os louvores do Senhor, confiando nele e só nele, continua sua caminhada mesmo entre dificuldades e sofrimentos. Até a perspectiva do martírio não apaga sua alegria e sua esperança de um mundo melhor: uma esperança inabalável de uma terra sem males.

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