Jesus Cristo é
um ‘rei’ pobre, misericordioso e servidor! (Lucas 23,35-43)
Há
mais de 50 anos atrás, durante o Concílio Vaticano II, o saudoso e profético
Dom Helder Câmara escrevia, de Roma, aos seus colaboradores: “Celebrei a missa
de Cristo Rei. Claro que ele é Rei. Mas de uma realeza tão diferente, que eu me
angustio ao ver que, de certo modo, exploramos a realeza dele para justificar
inconscientemente a nossa. Durante a missa, pensei o tempo todo no pobre Rei,
com estopa nas costas e coroado de espinhos. E fiquei repetindo baixinho: ‘Meu
pobre Rei, para mim você é (o mendigo) Luciano’. Dependesse de mim criaríamos uma festa nova: a festa de Cristo
Servidor e Pobre”.
Ainda hoje, as imagens do poder continuam exercendo sobre uma irresistível
sedução sobre muita gente. Muitos experimentam uma espécie de êxtase quando têm
a oportunidade de se aproximar de um chefe de estado, de um rei ou príncipe, de
um ídolo do esporte, de um cardeal ou do Papa. Mas os Evangelhos nos previnem
severamente contra os riscos de uma aproximação ingênua entre Jesus Cristo e um
rei ou um destes ídolos famosos e poderosos. Quem identifica Deus com os reis,
príncipes e sacerdotes acaba olhando o Cristo crucificado e os excluídos de
todos os tempos sem entender nada.
É verdade que Jesus anunciou algo como um reino ou reinado de Deus. Ele mesmo
foi aclamado como descendente do rei Davi, como o Messias e o rei esperado. Mas
isso nada tem a ver com a figura dos reis e chefes que a história nos deu a
conhecer, pois alguns deles assassinaram os próprios familiares para alcançar o
trono. A referência a Davi expressa a esperança de uma liderança nova e
popular, de um líder humilde e corajoso na defesa dos injustiçados, nos moldes
do frágil e rejeitado filho de Jessé, excluído pelo próprio pai da festa dos
filhos e herdeiros (cf. 1Sm 16,1-13).
Jesus anunciou e colocou em ação o reinado de Deus. Deus reina quando os coxos andam, os cegos veem, os mudos falam, os presos conquistam a liberdade, os oprimidos adquirem a
cidadania, os mortos ressuscitam e os pobres recebem boas
notícias. Deus reina na medida em que homens e mulheres superam as relações de
dominação e exercitam a liberdade e a solidariedade. Jesus realiza o reinado de
Deus esquecendo-se de si, fazendo-se irmão e servidor de todos,
prioritariamente dos últimos na escala social. Ele renunciou à igualdade com
Deus, despojou-se de tudo e assumiu a vida humana e a posição social dos
escravos. E é por isso que o mundo inteiro deve fazer reverência diante dele.
A cena descrita por Lucas no evangelho de hoje nos apresenta Jesus
crucificado
entre dois condenados à morte. Toda a sua vida foi uma proclamação viva de um
Deus que acolhe os últimos e faz justiça aos oprimidos. Pregado na cruz entre
dois condenados, Jesus proclama silenciosa e inequivocamente a solidariedade de
Deus com os excluídos e põe em ação o reinado de Deus. Enquanto os reis e
príncipes se afastam dos homens e mulheres e os consideram desprezíveis, Jesus
compartilha a sorte dos condenados e os acolhe no seu reinado. Certamente
esse não é um rei muito convencional.
Por isso, o Cristo pendente da cruz permanece uma espécie de espada que
penetra
nossa fé até à medula e incomoda a Igreja e seus chefes. E não passam de fuga e
de traição as tentativas de substituir os espinhos por uma coroa de ouro e a
cruz por um trono glorioso. É nesta condição de condenado e de proscrito, de
quem compartilha a condição dos desclassificados, que Jesus nos livra das
trevas do poder impostor e é o primogênito da humanidade regenerada, a cabeça da
Igreja seu corpo, o príncipe das mulheres e homens libertos. A ele podemos
pedir: “Lembra-te de mim quando entrares no teu reinado!”
Enquanto expressão mais radical da proximidade e da solidariedade de Deus com a
humanidade discriminada, Jesus é potente e eloquente sacramento da humanidade
renovada. É entregando-nos a vida como dinamismo e força de uma compaixão que
regenera que ele nos salva. É compartilhando a humana carência que ele
conquista a plenitude pela qual todos anelamos. E é fazendo-se em tudo irmão e
servo que ele resgata a dignidade da verdadeira autoridade. É na boca de um dos
companheiros proscritos e condenados que ressoa a proclamação da inocência de
Jesus: “Ele não fez nada de mal.”
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